2020 está a ser um ano demasiado longo para todos nós. 2020 está a ser o ano que muitos desejávamos nunca ter vivido. 2020 está quase a acabar, mas isto ainda vai piorar antes de melhorar. Nestes infindáveis 12 meses fomos confrontados com medos e cenários que nunca imaginámos, vivemos semanas escritas pelo guionista da maior distopia possível, conhecemos a morte de perto e esquecemos de que a morte lá longe também dói a alguém. Disseram-nos que iria ficar tudo bem, que a união seria a solução, e, contudo, nada está melhor.
O futebol reflete a sociedade. É por isso que gosto tanto deste jogo, é por isso que aprendo tanto com este mundo. Ao longo dos mais de 60 episódios d'O Brinco do Baptista temos falado de muita coisa: do Torino ao Seixal passando pelo Farense; do Orfeão à Religião; da Filosofia à Arquitetura; do Eusébio ao Maradona; de ONGs e de liberdade de imprensa aos novos media. E falámos também de igualdade de género, do combate à homofobia e ao racismo. Foi nos dito que não valia a pena falar disso, que são assuntos menores, e a verdade é que esses temas venderam menos. No passado usava-se a expressão "assuntos fraturantes" para todos aqueles temas que representam a evolução da sociedade. O que espero do meu Sport Lisboa e Benfica é que esteja sempre do lado certo da luta e sempre na linha da frente do humanismo. A história do Benfica tem de ser de evolução, progresso e modernidade.
E é também por isso que digo que a estrutura do Sport Lisboa e Benfica está doente. Desde meados da década passada que sofre de soberba. Durante alguns anos, o clube evoluiu, cresceu, melhorou, ganhou. Não houve um fator só, houve vários e bem diferentes, mas é óbvio que tudo correu bem e o contexto permitiu uma fase muito ganhadora. O clube evoluiu para um perfil mais empresarial; cresceu em infraestruturas; melhorou no marketing e na comunicação; ganhou títulos (e ainda podia ter concretizado mais alguns). Tudo parecia perfeito. Só que não há perfeição no mundo e muito menos há modelos intemporais. A sobranceria da estrutura começou a cegar os dirigentes e boicotar o resto da evolução. As pessoas do "10 anos à frente" não perceberam que é preciso continuar à frente, que isso dá trabalho. Pelo contrário, começaram a perseguir todos aqueles que têm vindo a alertar para o facto. As últimas Assembleias Gerais, mas também as redes sociais, têm mostrado que todos os benfiquistas querem o melhor do clube, todavia nem todos acham que o caminho é o mesmo. É justo. Tem de ser assim numa democracia. Mas viver democraticamente também significa reconhecer que criticar uma figura da estrutura não é atacar o Benfica. Isto é válido para um clube, para uma associação, para um partido ou para um governo. Parece simples, porém temos de repeti-lo todos os dias. Conheço demasiados benfiquistas que têm dado muito ao clube e que nunca exigiram nada em troca, por isso, é demasiado doloroso vê-los serem atacados só porque exprimem uma opinião contrária à dominante. No Benfica todos os sócios valem o mesmo, apesar do sistema de votação dizer outra coisa.
As eleições do passado mês de outubro mostraram o pior dos cenários possíveis. No fundo, foi apenas a confirmação de algo que já se antevia nos últimos meses. Sobranceria da Direção, da Mesa da Assembleia Geral, de ex-jogadores, de ex-treinadores, de bots, de um lado e de outro na campanha. O clima agressivo virou guerrilha. Só que uma guerra só existe com dois lados, por isso, ninguém é inocente. Infelizmente. Para mim, o Sport Lisboa e Benfica precisa de mudar. Precisa de mudar porque não ganha mas, sobretudo, porque não respeita a sua matriz democrática e humana, porque não defende o que sempre defendeu: "De muitos, um."
No clube que aprendi a amar, não há espaço para racismo. Não quero ver adeptos racistas, não quero ver jogadores racistas, não quero ver treinadores racistas. O Sport Lisboa e Benfica tem de dizer que não ao racismo. Tem de dizer e tem de mostrar. Tem de agir contra o racismo todos os dias. Tem de tomar medidas contra o racismo estrutural, tem de evitar as desculpas "há que ver o contexto", "ele não se expressou bem", "não precisamos de estar sempre a falar disso". O Sport Lisboa e Benfica (1904-2003) teve sempre uma papel importante na luta contra o racismo, a xenofobia e a discriminação. Tenho demasiado medo que algo em 2003 tenha acontecido e as coisas tenham mudado. Vejamos alguns exemplos recentes:
Renato Sanches
Foi uma campanha vil. O Benfica defendeu-se como pode, só que devia ter feito mais. O melhor que conseguiu foi contratar um dos responsáveis dessa vergonhosa campanha para o clube. Tenho quase a certeza de que neste caso não compensa ter os inimigos por perto e pagar-lhes um bom dinheiro.
André Ventura
O político dos valores maleáveis ficou conhecido por ser adepto do nosso clube. Não há volta a dar. Se o Benfica tem culpa? Não, a CMTV tem mais, o PSD também tem a sua parte. Mas, claramente, o nosso clube nunca se afastou de um homem que não representa os valores benfiquistas. Pelo contrário, o Benfica deu-lhe sempre acesso a informações e reconheceu-o por mais do que uma vez. Isso é um sermos corresponsáveis. No meu Sport Lisboa e Benfica, não.
Moussa Marega
O Benfica reagiu tarde. Demasiado tarde. A comunicação do clube não percebeu que não há cores nesta questão do racismo. Quem ataca um jogador, qualquer seja o seu clube, ataca todos. Quem ataca uma pessoa por motivação racial ataca toda a nossa sociedade. A comunicação do Benfica ao não perceber isto acabou por pôr em causa todo o meritório trabalho da Fundação Benfica.
Christy Ucheibe
PS: O Benfica reduziu uma acusação de racismo a um mero post scriptum. Afinal o problema com Renato Sanches ou Moussa Marega não foi uma distração, é mesmo sintoma de que isto é uma questão menor ou acessória. Ou talvez seja apenas uma moda.
Jorge Jesus
O homem das modas é também o homem que neste momento não passa da mediana. JJ talvez tenha razão e seja mesmo uma moda, ou haja uma maioria de benfiquistas (e portugueses) que acha que o racismo é uma não-questão, mas a história do Sport Lisboa e Benfica exige mais. Em menos de uma semana, o treinador da equipa principal de futebol foi misógino e agora conivente com racismo. É demasiado grave para alguém que nos representa. É demasiado grave para alguém que tem um papel mediático muito importante na sociedade portuguesa.
Sei que parece que isto foi tudo para o mesmo saco. E, realmente, até foi. Há aqui situações e explicações bem dispares, só que a revolta que sinto também explica a perda de alguma lógica e estrutura mental. Estou angustiado com tudo isto. Quero o Sport Lisboa e Benfica grande em campo mas também fora dele. Ao mesmo tempo, vejo benfiquistas, de quem gosto muito, desiludidos e acossados. "Isto não é o meu Benfica". Como vemos, há várias razões para isso e algumas delas são temporais, outras estruturais. É bom que quem está à frente do clube que perceba que precisa dos adeptos e precisa deles apaixonados ou o final da linha não será bonito.
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