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Foto do escritorAires Gouveia

Anatomia de um sticker #3: From Father to Son.



"Football offers fathers and sons something to do together. It is a strange way of saying 'I love you', but a way of saying nonetheless"

- Daniel Gray


Escrito em 2016, "Saturday, 3PM - 50 Eternal Delights on Modern Football" é um compêndio de pequenos relatos, escritos em tom poético pela mão de Daniel Gray.


O título não é inocente.

Daniel Gray, um adepto de longa data do Middlesbrough, teve a ideia para a obra numa tarde em que estava a questionar o seu amor pelo jogo e pelo clube.

Já todos passámos por isso.


Após mais uma derrota e algo desalentado com a natureza cada vez mais mercantilista e plástica do dito futebol "moderno" (coloco aspas porque temos de ter em conta que o romântico futebol do "good old days" também já foi moderno um dia), Gray teve como que uma epifania ao deparar-se na prateleira do seu "pub" habitual com uma cópia de "Delight", um pequeno ensaio autobiográfico escrito por JB Priestley em 1949, num Reino Unido exausto após uma grande guerra.


Priestley, um profícuo autor cuja obra versa muito a temática do tempo e a passagem do mesmo, compila nesta obra um conjunto de curtíssimos relatos sobre todas as coisas mundanas que na altura lhe davam prazer. Como que uma cápsula temporal estabelecida, em "Delight", o autor escreveu sob a beleza das pequenas coisas que lhe davam satisfação naquele preciso momento.


Gray, que se sentia segundo palavras do mesmo "preso numa relação unidirecional abusiva com o seu clube e com o futebol em geral" [tradução livre], resolve reabilitar todo o seu amor ao jogo, escrevendo 50 curtíssimos relatos (menos de 500 palavras cada) sobre as pequenas coisas que ainda lhe dão gozo e prazer no futebol atual.


Mas ao contrário do que possam estar a pensar, não o fez de uma forma saudosista e revisionista (até porque tendemos sempre a mitificar ou a "dourar" um pouco o passado, até porque muito dificilmente o mesmo voltará para nos confrontar), numa espécie de manifesto "against modern football".

Adoptando uma postura sincera, concentra-se realmente na beleza das pequenas coisas que o futebol atual ainda tem para nos dar.

E o porquê do mesmo ainda cativar largas porções de pessoas mesmo em novas gerações.


E isso, ou seja olhar o futebol sob este prisma, acaba por ser refrescante e diferente num meio tão tribalizado e tão polarizado.

Um meio por vezes envolto numa teia e numa neblina mediática negativa, que muitas vezes coloca tantos de nós a questionar-se sobre o porquê de ainda gostarmos tanto do fenómeno.


A resposta, ao contrário do que se possa pensar, é bem mais fácil de encontrar e talvez parte da mesma esteja em jogos como o último derby no feminino - que levou mais de 27 mil às bancadas na Luz, sendo um bom exemplo de um raio de luz que nos ajuda a encontrar norte no meio de tanta neblina nefasta.


Uso este jogo por uma razão em particular.

Do que aferi, para muitos, este jogo foi a primeira oportunidade para levar os filhos e filhas ao estádio.


Pode parecer estranho mas numa era em que os jogos são quase todos em horários noturnos, com preços impraticáveis para a maioria das famílias, numa Liga (onde joga a equipa principal masculina, que é o principal motor do clube) que não permite grande planeamento e quando o faz fica refém de "slots" do operador televisivo - atirando jogos para horários e dias impróprios, este jogo foi um oásis que teve o condão de permitir esta primeira experiência para muitos dos que me leem.

E teve o condão de nos mostrar aspetos positivos que ainda fazem novas gerações vindouras cair de amores por este jogo que tanto amamos.


Para muitos, foi igualmente o repetir de um ato feito há 30 ou 40 anos atrás, agora estando no outro lado, num movimento perpétuo de transmissão de amor de pais para filhos.

A primeira ida à Luz.

Apresentar a Catedral aos filhos e filhas.


Não é descabida esta questão.


Em Portugal, uma das principais razões de escolha clubística prende-se precisamente com a herança ou preferência familiar. Que pode igualmente funcionar ao contrário.


Claro que não são descabidas as razões de proximidade geográfica ou mesmo outro tipo de razões mais inusitadas como preferências cromáticas. Mas cingindo a observação cá, diria que a herança familiar será a maior razão.


Eu próprio "padeço" desse mal e talvez a minha observação esteja enviesada (coloco as aspas na palavra padeço porque na realidade deve ler-se agradeço).


Apesar de nascido a mais de 1000 km da sede física do clube, sou benfiquista devido ao meu pai e ao meu irmão mais velho.

Isto apesar das tentativas de conversão do meu tio portista ou dos vizinhos sportinguistas. Quer o meu tio ou os meus vizinhos levavam-me ao velhinho Caldeirão dos Barreiros para ver o seu União da Bola. Aliás a minha cultura de estádio foi tarimbada aí.


Mas mantive sempre lealdade ao Benfica e já agora ao Marítimo, clube pelo qual o meu pai também nutria grande afeto.


Num tempo ainda com escassas transmissões televisivas - ainda para mais tendo acesso a apenas um canal que começava emissão a meio da tarde, recordo com afecto as longas tardes em que via o meu pai a ouvir relatos de futebol à porta da casa dos meus avós paternos (na Choupana).

Ou a memorabilia benfiquista que amigos de cá do rectângulo lhe enviavam como oferta e que ele orgulhosamente incorporava na decoração de casa. O típico azulejo do "bom pai de família é benfiquista".

Ou a caneca de cerveja com o emblema antigo bem catita (um relíquia que ainda hoje conservo). Ou uma medalha em bronze com a antiga e imponente Luz em relevo.

A cassete "Benfica Mix" com cânticos que ainda hoje entoo no estádio, que ele ouvia em todo o lado, fosse em casa ou no rádio no carro, isto sempre intervalado pela sua querida Amália e do seu estimado Carlos do Carmo.


(pausa)


Cresci já numa Madeira em rápida mutação.

Vivíamos noutros tempos e o meu pai era uma pessoa de outro tempo.


O choque talvez fosse inevitável e fosse o curso natural das coisas.

Olhando para trás, não um período fácil e a minha mãe é que talvez tenha sofrido mais com tudo isso.

Eu era estúpido e "pseudo-revoltado" (apesar de não ter razão para tal).

Ele era algo obtuso, sem ferramentas para se adaptar a um meio e a um contexto diferente daquele no qual tinha criado os seus outros dois filhos mais velhos - para nem falar na realidade totalmente dimétrica no qual tinha crescido da década de 40.


Não sou pai, mas quer me parecer que apenas depois de passarmos pela experiência de paternidade (o mesmo será igual com a experiência de maternidade) é que compreendemos o outro lado e começamos a entender algumas decisões a acções que foram tomadas pelos nossos progenitores.

Só após estarmo no outro lado é que compreendemos e relativizamos o porquê de certas atitudes ou decisões.


Talvez seja a lei natural da vida.

Talvez.


Apesar deste quadro (agora que releio o que acabo de escrever parece bem mais negro do que foi - que fique claro que tive uma infância e um crescimento num contexto feliz e com muito amor), a dada altura, a comunicação só não era inexistente entre o meu pai e eu devido a um tema: futebol.

Muito em particular o Benfica.


E foi talvez a partir dessa base que a relação mais tarde foi recuperada, estando eu já cá no rectângulo e sendo o fornecedor de memorabilia que ele orgulhosamente usava.

Como bonés.

Cachecóis.

Ou uma bandeira (que não sei onde está) que ele colocou na varanda de casa que a dada altura estava paredes meias com uma das sedes da Casa de um rivais cá na ilha.


Ou mesmo um quadro que fiz (nas minhas experimentações em stencil) com Coluna, Costa Pereira e Eusébio e que ele colocou sobre a sua mesa de cabeceira.


(nova pausa)


Como já devem ter percebido, este texto não é inocente.

Nem a data em que o estou a publicar.

Aliás, talvez tenha sido esta a razão ou o bloqueio pelo qual nunca mais publiquei nada (de forma escrita) aqui neste espaço.

Porque tenho este texto aqui pendente há imenso tempo.


Perdoem-me este registo mais pessoal.


(nova pausa)


E regressando a Gray, e simpatizando e compreendendo a razão do desânimo deste com o futebol hoje em dia, é a estas pequenas memórias e às similitudes que vejo que ainda ocorrem que regresso - como vi acontecer no já referido derby no feminino.


Algo que também senti quando deparei-me (há uns anos atrás) com o trabalho de Paine Proffitt.


Proffitt, artista contemporâneo inglês (apesar de nascido nos EUA - filho de um correspondente de guerra, viveu em várias latitudes de Saigão ao Quénia, passando ainda por Beirute), tem um trabalho com influências de Chagall ou Picasso.

Apesar de, quando questionado sobre tal, não se enquadrar numa corrente artística específica, Paine descreveu a sua obra como tendo laivos de surrealismo, cubismo ou mesmo pinceladas da chamada arte "naïf".


Mas observando a sua obra, salta à vista a sua outra grande influência: LS Lowry.


Lowry, famoso pelo seu estilo de pintura muito peculiar, versava nas suas telas temáticas muito próprias que retratavam paisagens urbanas do norte inglês industrial - o que talvez explique o grande carinho que existe em Inglaterra pelo seu trabalho e pelas suas "matchstick figures".


Apesar de ter uma personalidade algo excêntrica e enigmática (para os padrões da época - vivia numa aparente reclusão não se sabendo da existência de parceiras ou parceiros, sendo que consta que vivia rodeado de vários relógios todos acertados com horas diferentes), tinha uma outra paixão que igualmente retratou nos seus quadros: outra vez o futebol.


Engraçado que uma actividade que tendemos a catalogar de fútil (pessoalmente considero a coisa mais fútil que adoro) desempenhe e tenha um papel fulcral na vida de milhões de pessoas.


Regressando a Lowry, apesar da personalidade introvertida, era um grande adepto do Manchester City e tem na sua obra vários quadros que transparecem a paixão e o fervor com que o futebol era vivido pelas classes trabalhadoras.


Em Proffitt, esta temática está muito presente e muito do seu trabalho inicial versou essa sua (igual) paixão pelo futebol com especial ênfase no espaço que esta atividade ocupa na vida de um normal trabalhador.

Segundo este artista, "o futebol é central naquilo que somos e para onde vamos" [tradução livre].


Daí que tenha sido natural as inúmeras colaborações que desenvolveu, quer com o West Bromwich Albion, quer igualmente com Nottingham Forest ou mesmo o Arsenal.

Também colaborou para fanzines do (seu) Port Vale, já gora e a título de curiosidade, o clube do coração de Robbie Williams, que ao que parece é um grande fã do trabalho de Proffitt.


Mais a norte, também trabalhou com o Aberdeen e foi aí que me deparei com o seu belíssimo trabalho, tendo tomado a liberdade de adaptar uma das suas imagens ao nosso contexto e ao nosso clube.


Em Maio de 2019 foram produzidos 1000 exemplares em papel adesivo 80g, numa gráfica online hoje inexistente (a imprimeonline.pt).


À parte de aspetos técnicos (afinal de contas, o objectivo primordial deste texto é explicar o porquê de um dos meus inúmeros to.colantes), voltando à imagem escolhida, nota-se que mesmo numa paisagem algo lúgrube e cinza, é possível observar a comunhão existente entre adeptos de diferentes gerações.

Como um movimento perpétuo de transmissão de amor.

Numa interpretação pessoal, acaba por representar uma natural e contínua corrente de valores.


Futebol é muitas vezes retratado como um domínio e um espaço tribal onde é negada a presença do outro.

Não nego que essa dimensão possa estar presente.


No entanto, pode e deve ser vivido como um domínio comum.

Um dos poucos redutos abertos e interclassistas de uma sociedade que nos últimos anos tende a fechar-se em pequenas bolhas.

Um espaço de partilha e convivência sã entre diferentes gerações.


Daí o nome com que designo este to.colante em particular: "From Father to Son".

De pai para filho.

Que pode também ser de avô para neto.

Ou de tio para sobrinho.

Ou de padrinho para afilhado.

Nestas questões de transmissão de preferência futebolística os casos podem variar e até pode nem estar envolvido algum grau de parentesco familiar. Muitos foram convertidos pelo vizinho que levava a malta à bola.


Permitam-me mais uma nota pessoal.

Conforme já devem há muito ter percebido, este é um to.colante que me diz muito.

Que aliás, ajuda em parte a explicar o amor que tenho ao futebol e já agora ao clube.


Há cerca de dois anos atrás fiz a colagem que mais me custou na minha vida.


Enquanto muito de vós (e bem) desciam a Avenida da Liberdade e outros espaços icónicos celebrando a Liberdade, eu despedia-me pela última vez de uma pessoa que amava muito.

Foi um consumar de uma dura despedida iniciada uns dias antes, com ele ainda com vida, num gélido quarto de um hospital.


(nova pausa)


Não é fácil.

Acreditem.

Muitos de vós talvez já tenham passado por isto.

Outros nem tanto e algo que não desejo a ninguém.


É duro saberes que entras num quarto sabendo que é a última vez que verás com vida alguém que tanto estimas.


De modo improvisado coloquei Carlos do Carmo a tocar - na música "Lisboa, Menina e Moça", melodia que tem uma adaptação que é muitas vezes cantada nos nossos jogos, e que sempre que é entoada recorda-me o meu pai.


Naquele momento, naquele espaço, por entre muitas lágrimas, entre muitas coisas ditas sussurrei um "Viva o Benfica!".


(nova pausa)


Não tive, como muitos de vós, a oportunidade ir com o meu pai à Luz.

Aliás tirando esporádicas idas aos Barreiros com ele, as únicas vezes que lembro-me de ter ido a campos de futebol com ele, era para ver o seu Choupana FC, um clube local junto à casa onde tinha nascido.

Invariavelmente ficava mais tempo no bar com os amigos que a ver o jogo.


Não o censuro.

Com idade tendemos a valorizar muitas outras coisas para além dos noventa minutos em si.


Na minha relação com o meu pai, a ligação estabelecia-se quando ouvíamos relatos radiofónicos em conjunto.

Mais tarde e quando ia à ilha, a ver jogos na televisão.

Pode parecer pouco mas para mim era imenso.


(nova pausa - não está a ser fácil escrever este texto)


Muitas vezes discute-se o que poderemos fazer pelo clube que gostamos. Eu próprio costumo dizer que todos temos o clube o queremos que ele seja, porque concebo que enquanto sócio ou mero adepto, todos temos capacidade de intervir e fazer algo pelo mesmo. Mais que meros clientes passivos, deveremos acima de tudo ser sócios e adptos activos. Claro que aceito quem discorde disto, até porque para mim a palavra chave que associo ao fenómeno e ao Benfica em particular é diversidade.


Mas considero igualmente que poucas vezes paramos para refletir sobre aquilo que o clube nos dá, para além de satisfação pessoal, rendimento desportivo ou qualquer outro tipo de gratificação que cada retira do mesmo.


Muitas vezes, pessoas normalmente fora do círculo da bola, questionam-me sobre o porquê de investir muito tempo e recursos em algo que ao fim ao cabo acaba por ser uma matéria que racionalmente é algo fútil. Nortear toda a minha vida, gestão de tempos livres, férias, gestão de vida familiar, enfim toda uma multiplicidade de fatores de vida dita "real" em prol de algo que racionalmente não passa de um mero jogo ou de uma mero afecto clubístico.


A resposta talvez esteja na tal colagem mais dura que fiz.

Neste singelo mas belo to.colante que o meu pai levou consigo no seu caixão.


(permitam-me uma última pausa)


Sei que soará estranho e fútil, mas entre muitas coisas, o futebol e em especial o Benfica deram-me a oportunidade de ter momentos de ligação com alguém que gostava muito, a alguém que não tinha as ferramentas para expressar diretamente tal sentimento.

Permitiu que mesmo nas alturas mais escuras se mantivesse uma ténue luz, sendo o farol que levou a navegação ou neste caso a comunicação a bom porto.

Claro que gosto de futebol e Benfica por muitas outras razões, mas reconheço que este fator que tem igualmente o seu peso.


Daí que considere que o Benfica já me deu mais do que eu dei a ele. Aliás, acho que por muito esforço que faça, nunca irei conseguir pagar tão grande dívida.


Volto a frisar que o futebol e o amor a um emblema devem ser das coisas mais fúteis na vida.

É de certeza a coisa mais fútil que amo.


Mas mesmo as coisas mais fúteis podem ter um sentido e estar carregadas de um significado.

E por vezes podem ser um estranho meio para expressar algo que é realmente importante e genuíno.

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