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Foto do escritorC. Rebelo

Ficasses em casa

Este texto esteve para não ser publicado. Hesitei bastante, porque vou ter palavras menos elogiosas para grupos de pessoas onde se encontram amigos e familiares, que se podem sentir melindradas com o que aqui irei escrever. Mas o timing é relevante, sobretudo numa altura em que tanto se discute as liberdades dos adeptos portugueses nos campos nacionais.

Para mim todos os jogos do Benfica são aways. Vivo no estrangeiro, e como tal sempre que quero ver o meu clube do coração jogar, tenho de fazer um investimento forte (não só financeiro mas igualmente logístico) para que tal aconteça. Mas esse é um esforço que faço voluntariamente, não tenho ninguém a apontar-me uma pistola para o fazer nem me sinto mais ou menos benfiquista por fazê-lo. Esse é, aliás, um dos motivos de maior tensão entre adeptos do mesmo clube nos últimos tempos: a “medição de pilinhas” versão futebolística.


Uma das principais figuras públicas no Reino Unido escreveu uma crónica há poucas semanas, onde manifestou o seu desconforto em admitir publicamente que gosta de futebol, já que segue regularmente outros desportos que lhe são igualmente interessantes, levando a que seja frequentemente menosprezado por familiares por não acompanhar nem saber tanto sobre o Arsenal como eles. Revi-me nestas palavras, mas no mau sentido, já que fiz algo semelhante com familiares, ou mesmo entre amigos, onde brinquei com eles por não saberem o nome de certos jogadores ou não irem ao estádio há anos. O que eu nunca fiz foi usar isso como arma de arremesso, como já lamentavelmente assisti. E nalguns casos, literalmente.


Foi o que se passou no away menos longínquo que tive de fazer em mais de uma década. Ditou a sorte que o Benfica viesse jogar ao país onde estou emigrado, e que só tivesse de fazer uma viagem de 2 horas para ir assistir à prestação do Glorioso. Em tantos anos fora do país, esta foi a primeira vez que isto me aconteceu, e a excitação era palpável. Era assunto diário cá por casa, mencionei-o aos colegas de trabalho, e os meus amigos já brincavam e diziam que nem que o Benfica perdesse isso me iria desanimar. De tal forma, que pensei seriamente levar o meu filho pela primeira vez a ver o Benfica, paixão que agora ambos partilhamos. Decidi não o fazer, e quis o destino que tivesse decidido bem.


O que se passou no estádio foi algo que deveria entristecer os benfiquistas. Estrategicamente espalhados pelas bancadas reservadas aos adeptos encarnados, encontravam-se várias dezenas de membros de uma claque do clube benfiquista. Devido à conformação do estádio, as bandeiras hasteadas impediam a visão dos adeptos que se encontravam pelo menos até 10 filas atrás das mesmas. A certa altura, estes jovens membros da claque começaram a erguer tarjas pelas bancadas, tarjas essas que mais tarde descobri (pelas fotografias) nem serem de apoio ao clube. Sem pedir licença, passavam entre as cadeiras e berravam “Mais acima! Espera, ainda não é agora!”, e entretanto os adeptos que já tinham a visão de jogo reduzida devido ao fumo e às bandeiras, apanhavam agora com tarjas na cabeça e viam o seu espaço pessoal reduzido.


A certa altura, uma senhora de meia idade que permanecia sentada insurgiu-se quando a sua filha (adolescente) foi magoada nas pernas pelo ímpeto de um destes membros da claque, e como consequência a senhora teve uma tocha atirada aos pés, viu o marido (suponho) ser empurrado e ameaçado quando as tentava proteger, e foi forçada a sair do seu lugar para evitar males maiores. Ainda hoje as palavras da senhora permanecem frescas na minha memória, enquanto se levantava no meio da fumarada: “viemos de longe, nós só queríamos ver o Benfica em paz”. E de facto, após este episódio, testemunhei outros que se seguiram em catadupa, desde um casal de Valongo cuja rapariga não aguentou o fumo, um rapaz e uma rapariga que iam caindo das cadeiras quando uma das tarjas foi recolocada no ar, ou um senhor de meia idade que simplesmente quis retirar uma tocha do seu lugar. Estes membros da claque colocavam agora capuzes e deixavam tochas por todo o lado, fugindo prontamente do local e levando à intervenção de demais adeptos que apagavam os artigos pirotécnicos antes que levassem a consequências mais danosas.





Gostava de poder dizer que fui corajoso, que dei o exemplo e tentei apaziguar a situação. Mas não. Eu permaneci em silêncio no meu lugar (falta-me a coragem e a saúde para me manifestar nestas ocasiões), talvez pela experiência acumulada. É que esta não é a primeira vez que passo por uma situação deste género. De facto, a primeira vez que isto me aconteceu foi em 2002, no estádio de Alvalade, num jogo amigável da selecção, e membros da Juve Leo usaram facas de cozinha para ameaçar (à minha frente) adeptos leoninos que queriam assistir ao hino de Portugal, e foram impedidos porque a claque levantou tarjas contra a Liga de Clubes e Valentim Loureiro. A partir daí já tive a infelicidade de passar mais vezes por momentos semelhantes e pasme-se o leitor que em todas as ocasiões, os adeptos que queriam ver as equipas em campo foram impedidos de o fazer por adeptos que, efectivamente, não estavam a apoiar as equipas em campo.


A curiosidade levou-me a ir às redes sociais e grupos de amigos para tentar perceber se alguém tinha comentado ou reportado o que se tinha passado neste jogo europeu do Benfica. E houve de facto quem tivesse trazido à baila estes confrontos, sem que faltasse o habitual comentário “ficasses em casa”. Ora o argumento usado é que tudo é permitido aos que dizem apoiar verdadeiramente o clube (o que não deixa de ser irónico nos casos supracitados), e que isso valida a atitude perante adeptos que desejam ver o jogo de outra forma. E qualquer outra forma está sempre uns furos abaixo do que os membros de uma claque consideram ser o verdadeiro apoio. O verdadeiro apoio só é um: o que os membros da claque fazem, e o resto é comparável ao que fazes em casa, sentado no sofá, em frente à televisão. Pouco importa o esforço que fizeste para ali estar no estádio, ou mesmo que a tua saúde ou personalidade não se coadunem com este tipo de comportamentos. Se gastas dinheiro, se preparas a logística com semanas de antecedência, se mudas todo o teu calendário e o da tua família para poderes ir apoiar o clube do teu coração ao estádio, então tens de te sujeitar às ameaças, ao fumo, aos petardos, à falta de visibilidade e a qualquer outra consequência que daí possa advir. Normalizar estes comportamentos é como achar normal ir a um cinema e mamar com pipocas em cima ou passar o filme com alguém ao teu lado a falar ao telemóvel, com a diferença que as pipocas alimentam mas as tochas nem por isso.


A velha máxima que "a minha liberdade acaba onde começa a tua" não é para aqui chamada. O lema agora é outro: as consequências das minhas acções e como elas afectam terceiros é absolutamente irrelevante desde que eu faça o que bem me apetecer. E este argumento só é possível existir numa realidade onde os adeptos do clube se julgam mais importantes que o próprio clube.


Manifestar o nosso amor a um clube pode ser feito das mais variadas formas, mas parece-me óbvio que nunca poderá comprometer o amor de outros que também querem bem ao clube. Há quem vá ao estádio e passe o tempo agarrado ao telemóvel, ou prefira sair 10 minutos antes do jogo acabar. Posso discordar completamente desta maneira de viver o clube, mas não compromete em nada a minha experiência ao vivo. Porém, numa altura em que tanto se fala nas restrições aos adeptos em Portugal, e nomeadamente aos do Benfica que são constantemente impedidos de entrar com simples adereços do clube, pergunto onde está a moral para que adeptos do mesmo clube impeçam outros de simplesmente ver o clube que apoiam? "Eu apoio mais que tu por isso tenho autoridade para te encher de fumo, tapar-te o campo, melindrar-te e também os que estão contigo e tornar a tua experiência de assistir ao jogo um pesadelo"?!


E lá voltamos novamente à medição de pilinhas. Mas eis que a certa altura terá de surgir a pergunta lógica: em que medida é que isto ajuda o Benfica? O que ganharam estes membros de claques encapuzados em antagonizar adeptos do próprio clube para poderem mostrar tarjas que em nada serviam de apoio ao Benfica? Quem é afinal mais importante nesta história?! É que a partir do momento em que o Benfica é remetido a um papel secundário para que outros tomem protagonismo durante um jogo, eu começo a desconfiar do tal amor ao clube.


Comecei este texto dizendo que ponderei seriamente publicá-lo. Discuti inclusive este tema com alguém que pertence à dita claque e que me é próxima, e que tentou justificar estes comportamentos como a consequência menos positiva de um apoio garantido e incondicional à equipa. Entendo, mas é uma consequência, a meu ver, desnecessária e evitável. Eu continuo a acreditar ser incompatível amar um clube, ou melhor, afirmar que se ama um clube, e simultaneamente restringir com ameaças o amor a esse clube, e com potenciais consequências nefastas para o mesmo (por vezes levando a que o clube incorra em multas ou mesmo interdições de estádios).


Da minha parte, e atendendo às circunstâncias em que me encontro actualmente, posso confirmar que este foi o meu último away do Benfica nos próximos tempos. O Benfica perde assim os meus gritos roucos, os meus cânticos fora de tom, os meus reparos às progenitoras dos árbitros e as minhas palmas fora de tempo. Em boa verdade, talvez até fique a ganhar com isso. Mas infelizmente, e por razões óbvias de segurança, o Benfica perde também a oportunidade de maravilhar uma jovem criança que passou os últimos meses a sonhar ver os ídolos ao vivo, a decorar cânticos e nomes “esquisitos” de jogadores.


A história do Benfica é de pluralismo. E os benfiquistas não deveriam ter medo de nada, sobretudo de outros benfiquistas.

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