A minha tem o número 2 cravado nas costas avançando de cabeça baixa para a marca dos 11 metros. O meu pai estava ao meu lado a olhar para a televisão e tudo por ali era ansiedade e silêncio. E eu não percebia o porquê do meu estômago começar a sentir-se apertado enquanto a respiração parecia não querer obedecer ao natural equilíbrio do corpo.
O Veloso remata para a esquerda, sem força, e o guarda-redes do PSV Eindhoven, Van Breukelen, voa para a vitória na Taça dos Campeões naquele derradeiro penálti. Estávamos em 1988, o meu pai não emitiu qualquer som, baixou a cabeça como que a imitar o gesto do Veloso e aqueles segundos souberam a eternidade a fintar a glória, mais uma vez. E eu? Eu tinha 8 anos e apaixonei-me violentamente pelo Benfica naquela noite de Estugarda.
Dois anos depois, pela frente o colosso AC Milan de Arrigo Sacchi. Nova final. Eu já percebia umas coisas da bola e sabia que o Maldini, o Baresi, o Gullit, o Rijkaard, o Van Basten, só para abrir o leque de talento puro, eram areia demais para a nossa camioneta. Ainda assim acreditava e acreditei que o Benfica carregava o nome de Glorioso por alguma razão e que as almas do Thern, do Magnusson, e do Valdo seriam suficientes para trazer o caneco para Lisboa. O minuto 68 encarregou-se de me explicar que não seria assim. Van Basten levanta a cabeça, mete no Rijkaard e este, com a parte de fora do pé direito, atira o Milan para mais uma Taça dos Campeões. 1-0 em Viena. O meu pai estava ali ao meu lado, de cabeça baixa a imitar o Silvino, outra vez. Não te incomodes Silvino, eu vou buscar a bola ao fundo das redes. A nossa hora há-de chegar, foi o que o meu pai me disse em surdina mesmo antes de apagar a televisão.
Novembro de 1991, Já não me lembro o dia, sei que a semana estava pela metade e eu tinha aulas no dia seguinte, tive de ir para a cama cedo mas conseguia ouvir o som da televisão no andar de cima, no escritório do senhor que me ensinou a ser do Benfica. A televisão estava aos berros e precisávamos de ganhar ao Arsenal, no mítico Highbury Park, tínhamos empatado na Luz 1-1. A televisão estava aos berros e eu de pé em cima da cama, às escuras, para ficar mais próximo do tecto e ouvir melhor o Isaías a rematar de fora da área e a calar os ingleses, não uma mas duas vezes. A televisão estava aos berros e o meu pai também. E eu também, de pé em cima da cama, às escuras a imaginar como teria sido. Foda-se, até me arrepio só de pensar nisto. Comecei a chorar como uma criança que ainda era, talvez o meu pai estivesse a chorar também no andar de cima. Ganhámos 1-3. Era Novembro, eu não me lembro do dia mas do escuro do quarto caíram-me lágrimas de glória. A televisão continuou aos berros pela noite dentro.
Porra! E o Bayer de Leverkusen?! Recordam-se? Eu ajudo-vos. Parece que foi ontem. Março de 1994. Fomos à Alemanha a precisar de varrer o jogo a nosso favor. O empate na Luz tinha dado um nó difícil de desatar para seguir até às meias-finais na Taça das Taças. Os gajos tinham o Kirsten e o Schuster que eram um perigo do caraças. Nós entrámos no jogo com pezinhos de lã e não tarda um fósforo já estávamos a levar duas batatas. Mas depois, em 2 minutos, com o Rui Costa a liderar a orquestra, marcámos 2 golos de enfiada, primeiro Abel Xavier, depois João Vieira Pinto e eu aos berros, possuído, de pijama e pantufas. Mas os sacanas dos alemães eram um osso duro de morder e dou por mim a perder por 4-3. Até que… até que o João Pinto arranca por ali fora, mais uma vez (quantas foram nesse jogo?), parte a defesa com um passe de outro planeta e o Kulkov assina uma página de imortalidade. 4-4! Chorei outra vez. Parece que foi ontem bolas, de olhos vidrados, de pijama e pantufas a gritar Benfica até as minhas cordas vocais pedirem arreio. Parece que foi ontem.
Dois meses depois, o jogo de uma vida para o número 8 da Luz. Alvalade e o título ali tão perto. 1-0 marcou o Cadete, depois o Figo também fez o gosto ao pé (foi de cabeça mas pronto), e o número 8 prestes a abrir o livro. E quando o fez, não abriu o livro, escreveu-o na relva com chuteiras pretas e brancas que na época não havia cá botinhas às cores. Devia ter ganho o Pulitzer o sacana do João. Hat-trick e o resto já se sabe, vencemos 3-6! Era o João pelo meio, era o João pela esquerda, era o João pela direita, era o João de cabeça, era o João com os pés. Era o João no Olimpo a fazer-me acreditar que Deus pode existir num jogo de futebol. Campeões e eu no estádio a festejar o último campeonato antes do que veio a seguir.
Deserto. O Damásio e o Vale Azevedo amolgaram-me a querença que Cosme Damião começou. Não jogávamos um caracol à chuva. Anos a fio. Foda-se. Levar 7 do Celta? Ainda hoje carrego a cicatriz dessa noite. Carregá-la-ei para sempre. Lembram-se do Tahar, do King ou do Clóvis? Não? Ainda bem. Podões vestidos de vermelho. E rodeado destes caramelos entrei eu na idade adulta sem nunca saborear o quente metal prateado da vitória. Anos a fio.
Mas, a paixão, essa eterna velhaca, continuou sempre por cá, nunca se foi embora. Como poderia? Afinal é o Benfica. O meu Benfica. E após todos estes anos de altos e baixos, de pé agora no cume da montanha do Tetra, sinto-me como da primeira vez, sinto-me como aquele miúdo que se apaixonou na noite de Estugarda com o meu pai ao lado de cabeça baixa sem imitir um som, a imitar o Veloso depois do penálti falhado.
▶ Texto enviado pelo benfiquista João Pedro Santos.
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