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Foto do escritorAires Gouveia

O Sócio Emancipado

Atualizado: 7 de fev. de 2021


(projecto de to.colante - nunca impresso)



"Em suma, a vitória e a derrota têm um preço para as pessoas comuns. A melhor coisa para nós é se não houver muita politiquice.”

Bertolt Brecht, Mãe Coragem e os Seus Filhos



Escrita em 1939, na ressaca da invasão alemã à Polónia, "Mutter Courage und ihre Kinder" é uma peça de teatro de Bertolt Brecht, um poeta e dramaturgo alemão. Sendo uma das nove peças escritas durante este período pelo autor, num acto de resistência pessoal contra a ascensão do Fascismo e do Nazismo, é comummente considerada uma das peças teatrais mais influentes do séc. XX e talvez a peça teatral anti-guerra por excelência.


Brecht, erroneamente afamado pela citação "Primeiro levaram os comunistas, eu calei-me, porque não era comunista. Quando levaram os sociais-democratas, eu calei-me, porque não era social-democrata. Quando levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque não era sindicalista. Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque não era judeu. Quando me levaram, já não havia quem protestasse" (é na verdade da autoria de um pastor luterano chamado Martin Niemöller, embora Brecht tenha proferido uma citação semelhante inspirada em Niemöller), é um dos mais mais influentes dramaturgos de sempre, tendo revolucionado a dramaturgia teatral, reflectindo muito no papel dos espectadores nas peças de teatro até então.


Mais do que agentes meramente passivos e reactivos (aos espectadores era pedido que se sentassem meramente na assistência e fossem guiados pela peça), Brecht - que considerava que o teatro não era um mero espelho da realidade mas si uma importante ferramenta para poder alterar a mesma, queria que os espectadores fossem provocados e obrigados a reflectirem sobre a sua própria condição (as peças abordariam temas comuns ao dia-a-dia de cada um), obrigando-os a criar a suas próprias conclusões do que tinha acabado de assistir, confrontando-se desta forma com os seus medos, erros, escolhas e tomadas de decisão, entre muitas outras coisas.


O teatro, seria assim uma assembleia onde as pessoas comuns ficariam cientes da sua condição e capacitadas para discutir os seus próprios interesses.


De forma a conseguir este sobressalto, ou seja, esta capacidade de transformar a audiência, passando a mesma de "voyeurs" passivos a espectadores activos, ou seja com consciência social e prontos a agir (independentemente da sua literacia ou status), Brecht criou um conjunto de técnicas, muito visíveis nas suas peças (em especial na referida "Mãe Coragem"), algo que designou de "Verfremdungseffekt". Efeito de distanciamento ou alienação, aqui numa tradução livre.


Pode parecer contra-senso face às linhas que foram até aqui escritas, mas de forma a envolver o espectador, tornando-o activo, pretendia-se que este mesmo espectador não se deixasse levar pela acção em palco, daí a alienação ou o distanciamento referido.





Apenas um pequeno parênteses.

Recordar que o termo teatro vem do grego "theaomai" (θεάομαι) que significa olhar com atenção, perceber, contemplar. O próprio Aristóteles, (início de novo parênteses dentro do parênteses) a quem devemos a primeira obra de teoria teatral ocidental ("Poética", que estima-se que reflectida e escrita por volta de 335 A.C.), o pensador que estabeleceu alguns dos cânones desta arte até aos dias de hoje - entre muitas importantes contribuições estabeleceu e descreveu as três unidades essenciais em teatro clássico: tempo - lugar - acção ou criou o conceito de catarse (do grego "kátharsis" [κάϑαρσις] ou purificação numa tradução livre), um estado que seria atingido por meio de uma descarga emocional provocada por um trauma num decurso de um drama (fecho de parênteses), criticava imenso os seus contemporâneos pelo excessivo valor dado à performance dos actores em detrimento do enredo e da mensagem ou emoções que a peça pretenderia despertar.

Para o grego, num drama (género que considerava ser superior à comédia ou à poesia épica), o enredo era figura central e não poderia advir dos personagens, mas, pelo contrário, este mesmo enredo testaria os personagens (que deveriam ter natureza mista - não totalmente herói, não totalmente vilão) através da elaboração do destino - o chamado "destino cego".


O que é certo, é que a maioria das técnicas teatrais empregues até às primeiras décadas do séc. XX (regressando a Brecht), levavam a que o espectador absorvesse de forma passiva as emoções que lhe eram dadas ou admirasse a performance que lhe era oferecida pelos actores. O que o alemão procurava era que a plateia passasse por cima das emoções transmitidas pelo actor (daí a alienação ou distanciamento pretendido) e se colocasse no centro da acção, pensando esta mesma acção de forma crítica, reflectindo sobre a sua própria vida, produzindo desta forma uma ignição para uma tomada de decisão na sua vida real.

Brecht pretendia um teatro transformador e não meramente uma peça estética com um intuito de ser admirada.

Teatro enquanto catalisador para uma mudança na sociedade.


Algo que é compartilhado, por um dos maiores pensadores ocidentais do último século, Jacques Rancière. Tal como Brecht (aliás usando o trabalho deste e do poeta e dramaturgo francês Antonin Artaud - que no seu livro "Le Théâtre et son Double" defende que não existiam actores e plateia, sendo todos parte do processo ao mesmo tempo), Rancière também coloca ênfase no papel transformador que a arte poderá ter na sociedade rejeitando (tal como Kant fizera séculos antes) a noção elitista muito presente em movimentos artísticos como o modernismo, o pós-modernismo ou mesmo o vanguardismo. Para este filósofo franco-argelino, a arte tem uma função altamente "democratizante" (não sei se este vocábulo existe, daí as aspas), devendo a mesma estar disponível e ser compreendida por todos independentemente da sua posição social ou do seu grau de literacia.


Daí que na sua concepção, a arte seja importante não só pelo prazer estético que provoca, mas igualmente - e o que mais importa realçar, seja vital pela maneira como pode ser uma importante ferramenta de consciencialização social que em última instância pode levar a alterações na sociedade (na linha do pensamento de Brecht).


Força motriz na criatividade para este pensador, a imaginação é a chave para a criação de arte, adquirindo um papel fundamental. Ao imaginar, ao tentar criar algo diferente, ao tentar colocar-se noutra condição que não a sua, ao pensar e ao sonhar, qualquer um está a desafiar o status quo e a ordem onde vive.

Daí que para Rancière, mesmo a pessoa mais iletrada, tenha de ter o direito a criar. Ao fazer isso, estará a transcender a sua vida rotineira, a quebrar os grilhões que o acorrentam, sendo ao longo do processo forçado a pensar sobre a sua condição, podendo projectar uma outra realidade, o que em última instância criará as bases para uma mudança efectiva. Um iletrado que ouse criar um verso usando a sua imaginação, é para Rancière, mais perigoso que um revolucionário que meramente repete uma quadra de uma canção revolucionária.

A arte, mais que tudo, deveria ter uma mensagem e deveria inspirar mudança.


No seu livro "O Espectador Emancipado" (edição Orfeu Negro), e usando o exemplo do teatro (que assumia como sendo reflexo da sociedade), partindo do seu grande paradoxo (não há teatro sem espectadores), Rancière observa que o papel normal do espectador de uma normal peça teatral era até então estar duplamente separado quer da capacidade de saber quer da capacidade de agir. É precisamente contra esta passividade que o franco-argelino quer acordar a audiência, capacitando-a a agir e a interagir com a acção que decorre em palco. "É na base deste poder activo que um novo teatro deverá ser criado, ou melhor, o teatro deverá restaurar a sua verdadeira virtude, até à sua verdadeira essência, do qual os espectáculos que têm actualmente este nome, não oferecem nada além de uma versão degradada. O que é necessário é um teatro sem espectadores, onde todos na audiência aprendem! (tradução livre)". Partindo das ideias de Platão sobre o teatro e sobre o papel dos espectadores, Rancière acha que a audiência deverá ocupar a posição do coro (das já referidas tragédias clássicas gregas), e tal como este mesmo coro, poderá actuar como um inspector que desvenda a trama em palco, tornado-se num participante activo na resolução da história.





Muitos (dos muito poucos que aguentaram chegar até esta parte deste longo texto - não os censuro) estranharão nesta altura o facto de estar, neste espaço, a falar de teatro ou de teorias filosóficas de Estética e Política (com especial enfoque no teatro).

Mas se pensarmos bem, há muitos pontos de contacto entre o desporto (em especial o futebol) e o teatro. Há toda uma dramatologia em volta do jogo.


Mickäel Correia (autor de "Une Histoire Populaire du Football" - livro recém editado em português também pela Orfeu Negro) escreve a este propósito que "enquanto espectáculo, o futebol retira a sua popularidade da sua força dramatúrgica. Cada jogo respeita os princípios do teatro clássico: unidade de lugar (o campo), de tempo (duração da partida) e de acção (a totalidade do jogo decorre diante do público). Toda a partida é uma intriga com forte intensidade dramática, cujo desfecho se escreve debaixo do olhar atento dos espectadores à circulação de uma bola disputada por duas equipas. Durante uma partida, é possível passar, em escassos segundos, da alegria à decepção, do medo à esperança, da raiva ao sentimento de injustiça."


Valdano, um dos grandes magos literários do jogo, descreve o futebol como "a emoção da incerteza e a possibilidade de prazer". Tal como o teatro. Daí que haja muitas ligações entre estes dois mundos, que à partida parecem tão desfasados. Não é à toa que Bobby Charlton designou Old Trafford como o "Teatro do Sonhos", ou que o Albert Camus tenha uma vez dito que o pouco que sabia sobre moralidade, tê-lo-ia aprendido em campos de futebol e palcos de teatro.

Por exemplo, a acção desenrola-se em actos (no caso do futebol em partes).

O futebol tal como o teatro (recordando o grande paradoxo deste) alimenta-se de duas dimensões: a que ocorre no terreno de jogo (o "palco") e a que ocorre nas bancadas (a "plateia").

Há igualmente o já referido conceito aristotélico de tempo (90 minutos), lugar (estádio) e acção (jogo).

O próprio léxico usado no futebol é emprestado do teatro. Os jogadores pisam "o palco". Há golos e reviravoltas "ao cair do pano".


Na Suécia existe um pequeno clube (Östersunds FK) que usava a arte para promover a união de grupo. O plantel deste pequeno clube do norte da Suécia era obrigado, entre outras coisas, a ter que fazer uma peça teatral por ano (e com resultados interessantes, porque com apenas 24 anos de existência, o clube já ganhou uma Taça da Suécia e passou uma fase de grupos na Europa League).

Numa latitude um pouco mais abaixo, na afamada cidade portuária de Hamburgo, o "kult club" dos piratas de St. Pauli, teve entre 2002 e 2010 um presidente que era um produtor teatral (e fiel aos principios inclusivos do clube, o primeiro presidente abertamente homossexual de um clube profissional de futebol): Corny Littmann.

Na própria Liga Portuguesa há um clube (por sinal com 20 votos nas eleições no nosso clube dado que é uma filial nossa) cujo nome descende daquele que é considerado o pai do teatro português: Gil Vicente.

Na nossa casa, Félix Bermudes, um dos importantes nomes na nossa história, fosse como atleta, mais tarde como presidente (por duas vezes), autor do epíteto tantas vezes dado ao nosso clube (Glorioso), assim como o criador e autor do nome pelo qual hoje choramos e gritamos - Sport Lisboa e Benfica (aquando da junção em 1908 entre o Sport Lisboa e o Grupo Sport de Benfica), compositor do hino do clube (por altura das Bodas de Prata do mesmo) o mais tarde proibido "Avante p'lo Benfica!", foi um destacado dramaturgo e autor de inúmeras guiões e peças teatrais (o afamado "Leão da Estrela", depois adaptado ao cinema, é de sua co-autoria).


Expressões e conceitos teatrais foram importados para o jogo.

Em Dezembro de 84, após uma pesada derrota em Bruxelas frente ao Anderlecht na 1ªmão da 3ªronda da então Taça UEFA, Valdano (sempre ele), aqui ainda no papel de jogador do Real Madrid, roubava a expressão "el miedo escénico" ao colombiano Gabriel García Marquez, e proclamava num tom profético que "o rival irá sofrer do medo cénico do Bernabéu". O que ocorreu no jogo da segunda mão foi uma "remontada" incrível do Real por 6-1, cravando assim a expressão nos anais da história do jogo com o significado (e citando novamente o argentino) "temor de um jogador ao entrar em campo num grande palco diante da incerteza de realizar uma péssima exibição e cair no ridículo".


E mais exemplos poderiam ser usados.



(foto via slbenfica.pt)


Mas não é à toa que falei nesta questão do "medo cénico" e há no léxico benfiquista um palavrão de dificuldade semelhante ao termo brechtiano "Verfremdungseffekt" (impossível de pronunciar no meu alemão inexistente).


Falo concretamente de "Assembleia Geral do Clube".


Antes de prosseguir e não querendo parecer totalitário ou redutor, como já muitas vezes escrevi e disse, reafirmo que cada um é livre de viver o clube à sua maneira.

Seja na bancada, seja no tipo de participação que tenham ou não na vida do clube, seja na dimensão onde concebem que o Benfica esteja presente na sua vossa vida. Não há maneira correcta ou errada.

Essa escolha é livre e concebo que não haja uma "praxis" única, desde que respeitando os valores pelo qual o clube sempre se pautou e norteou.


Dito isto e respeitando as razões de cada um, não deixa de ser para mim incompreensível a fraca participação por parte dos sócios na vida do clube, em especial nas Assembleias Gerais (AG's).


Talvez não se perceba a importância das mesmas na vida interna de um clube de sócios, como é o nosso. A esmagadora maioria da massa associativa demite-se de ter ou assumir qualquer participação neste sentido (ou qualquer outro tipo de participação).

Uma outra pequena porção, devido à distância ou à logística (devido ao local onde moram, horário em que estas reuniões são marcadas, devido a demais impedimentos de agenda pessoal ou profissional) não podem estar presentes.

Há igualmente um bom número de pessoas que apenas se lembra da AG quando a bola não entra, estando apenas presente quando os resultados da equipa de futebol (que é mola do clube) não são favoráveis. Haverá certamente outros que não estarão presentes por outras razões, que conforme já disse em cima, certamente serão válidas no seu entender.


Sempre concebi que o Benfica será sempre aquilo que os Benfiquistas e associados do mesmo quiserem que ele seja.


Não resisto no entanto a dizer que talvez já se tenha perdido, na memória histórica, os bons exemplos de sugestões e intervenções de sócios (dadas ou não em Assembleia), que ajudaram o clube em alturas muito difíceis da sua história.

Por exemplo, em 1907, com a saída de muitos jogadores da 1ªcategoria do Sport Lisboa para o recém-formado Sporting Clube de Portugal, só o engenho e resiliência de pessoas como Cosme Damião, o já referido Félix Bermudes e a sugestão de Marcolino de Bragança (um nome que quase nunca é falado e que julgo importante relembrar) permitiram a continuação de um clube que se transformou no gigante que conhecemos hoje.


Nestes tempos em se fala mais da marca Benfica do que do este conceito (para alguns antiquado) de clube de sócios, talvez não se perceba as AG's como um dos poucos espaços ainda existentes (talvez o único) onde é possível haver diálogo entre os sócios e os três órgãos directivos no clube.

Um espaço onde todo o staff desses três órgãos está à disposição de um simples sócio, que aí pode explanar as suas dúvidas, preocupações, sugestões de forma pública perante todos os restantes membros do clube.


A maneira paternalista como as direcções dos clubes tratam os seus sócios, que na prática são tratados como meros clientes, ajuda a este distanciamento.


Mas creio que parte do problema consiste na falta de percepção sobre o poder das AG's e sobre o poder de intervenção neste espaço.


Meto novo passe para o Valdano e recupero o seu "medo cénico". Não é fácil subir aquele estrato e discursar perante todos.


Eu próprio, (como muitos sabem) a parte gaga d'O Brinco (podcast cá da casa), teria muita dificuldade em subir ao palanque e discursar perante a Assembleia. Portanto, imagino o quão difícil é enfrentar esse medo. Mas não descarto a hipótese de o poder vir a fazer, caso ache que venha a ser necessário, isto em contexto de AG.

Assim como tento arranjar outras formas de participação activa, seja através de podcasts, seja através de textos como este ou seja mesmo por via de produção de stickers ("mística colante" como gosto de designar os meus to.colantes). Tal como outros terão as suas próprias formas de participação que acharão certamente úteis.

Como é óbvio, não tem tudo que cingir-se ao formalismo de uma AG.


Há todo um mundo possível e acreditem que a instituição ficaria muito mais rica caso a participação dos seus sócios e simpatizantes não se cingisse à passividade de um desabafo qualquer numa rede social (como é norma hoje em dia).

Diria mesmo que os sócios têm um "medo cénico" de intervir na vida interna do clube que são associados.


Mas volto ao "Verfremdungseffekt" que pretendo aqui abordar: as AG's e a sua efectividade, isto olhando à alienação e passividade existente no Benfica enquanto clube de associados.


Estas (AG's) deixaram de ser tidas em conta por muitos devido à percepção de que as mesmas tornaram-se no tipo de construções cénicas que Brecht pretendia alterar. Como que de um teatro (no sentido popular e desvirtualizado do termo conforme denunciava Rancière) se tratasse.

Senão vejamos: como que seguindo um guião, alguém da direcção sobe ao palanque numa primeira fase debitando uma linguagem por vezes indecifrável, muitas vezes incompleta, dando razão à crítica feita pelo franco-argelino sobre a elitização da mensagem veiculada pelas elites (neste caso, usando uma linguagem quase sempre empresarial e economicista que fica restrita a pequeno grupo de pessoas que a compreende - no folheto da AG de junho vinham siglas como CRM sem a respectiva descrição só para dar um pequeno exemplo), parecendo estas assembleias seguir um enredo cujo desfecho parece já estar escrito, independentemente das dúvidas ou da vontade dos associados presentes na AG.


Um enredo no qual muitas vezes os sócios estão completamente impedidos de reescrever ou alterar. Como se fossem uma plateia passiva que está lá meramente para validar um simulacro de democracia.


Outras vezes, quando há uma maior participação dos sócios, as suas dúvidas ou questões são por vezes olimpicamente ignoradas.

Isto quando não ocorrem outras situações. Uma das últimas AG's pré-pandemia quase que assumia contornos de tragédia grega com um pescoço a ser apertado, mas recorrendo ao termo cunhado por Aristóteles, nenhuma catarse adviu de tal facto (e que bem faria uma "purificação"), dado que nesta era de pós-verdade, até esse apertão que vi ao vivo foi posto em causa e nenhuma consequência adveio disso (já agora aproveito para questionar se a acta dessa AG já está disponível - até há bem pouco tempo, com a desculpa da pandemia, a mesma não estava ainda disponível).


Ivan Krastev, pensador búlgaro, a propósito desta pandemia, escrevia num ensaio redigido no início da mesma ("O Futuro Por Contar" - ed. Objectiva), que a pandemia, mais do que criar uma nova realidade ou obstáculos, meramente tinha exacerbado falhas que anteriormente já estavam presentes. Algo que a recente gestão por vezes errónea do Benfica tem comprovado.


E antes que esta frase que acabo de dizer seja mal entendida, convém fazer uma clarificação. Quando refiro em "gestão por vezes errónea" estou a falar do clube enquanto um todo, sem me focar especificamente na questão económica.


Porque se o clube nas últimas temporadas até tem estado pujante nos seus resultados económicos (talvez como nunca na sua história), quando se celebram mais resultados de balancetes que resultados dentro de campo, talvez algo não esteja certo, tendo em conta que estamos a falar de um clube desportivo.


Da mesmas maneira, quando se olha para as manchetes dos jornais e vê-se o nome do clube ser mais mencionado devido a factos extra-desportivos do que desportivos (muitas vezes envoltos numa cortina muito nebulosa que faria corar de vergonha aqueles que tanto nos honraram no passado), talvez algo não esteja certo.


E poderia continuar e enumerar várias situações e aspectos que no mínimo são algo questionáveis, mas não é este o objectivo primordial deste (já longo) texto.


Se permitem, talvez este mal, não advenha de direcção A ou B, mas sim do próprio ecossistema e do contexto que obriga os clubes a funcionar desta forma (e mais uma vez, não estou a ilibar com esta frase quem quer que seja ou os erros que possam ter sido cometidos).


(breve pausa no texto)


São muitos "talvez".





O que sei e sinto é que enquanto sócio de clube é que não acho nada normal receber na minha caixa de correio electrónico um questionário do clube cujo propósito é indagar a minha predisposição para deixar de ser sócio do clube mediante a atribuição de "descontos" ou "vantagens comerciais" ou possibilidade de manter lugar no estádio sem ter vínculo ao clube. Não acho igualmente normal ser abordado (agressivamente diga-se de passagem) para aderir ou subscrever algo, isto só porque sou sócio do clube e nos termos de utilização de algo (talvez da minha área pessoal de sócio) dei consentimento a algo (sem ter hipótese de recusa) num típico embuste que traí a confiança entre sócio e o clube do qual somos associados. Na realidade o que muitas vezes sentimos é que mais do que associados de um clube desportivo, somos na realidade associados de um qualquer endereço de descontos estilo "Groupon" (passe a publicidade).


E talvez na verdade, o busílis da questão seja precisamente este: o que muitos concebem como um vínculo de associativismo e de pertença a algo, para outros (muitos dos quais estão à frente dos destinos do clube) é um mero contrato de ligação comercial.

Nesta era das SAD's , o sócio só é tido em conta na sua dimensão enquanto cliente. E o pior é que esta lógica é passivamente aceite pela esmagadora maioria dos sócios que não se importa de ser tratado como tal. E ao contrário do que se pensa essa situação não é de agora. O estrondoso sucesso que constituiu o afamado "kit" de sócio lançado em 2005, estratégia inteligente que permitiu engrossar a nossa massa associativa mediante a transformação do cartão de sócios num cartão de descontos junto dos parceiros comerciais do clube teve um "pequeno" dano colateral (que só anos mais tarde viemos a perceber): na psique do comum sócio do clube interiorizou-se a ideia de que o clube deveria facultar algo a troco do seu associativismo.


Conforme disse o Sérgio Engrácia, um do pais do Benfica Independente, e compagnon de route n'O Brinco, no final deste último ep. #65 que gravamos - onde abordamos o Estrela da Amadora e todo o trabalho feito pela Magia Tricolor em prol desse clube pela voz do Marco Fernandes (aconselho audição), "a maior prenda que um clube te pode dar é o respeito, a dignidade e a transparência. É honrar os valores dos ases que nos honraram no passado, essa é a maior prenda que o clube te pode dar". Ponto de ordem à mesa: não se pretende um retorno à idade da pedra ou neste caso uma inibição do uso de estratégias de marketing como a descrita do dito kit. Estas são legítimas, ainda para mais num contexto cada vez mais profissional em termos de gestão desportiva. O problema é quando as mesmas se sobrepõem a todas as outras dimensões. João Tibério, e completando a tríade, o compagnon de route em falta d'O Brinco, recordava esta semana e bem que "nenhuma marca enche um estádio só porque as pessoas gostam muito dela. Só se cria ligação quando há emoção." Naomi Klein, socióloga canadiana, escreveu em 1999, um livro que é considerado por muitos uma bíblia da alter-globalização: "No Logo" (da Relógio d'Água). Logo nos primeiros capítulos do livro é possível verificar como a partir de certa altura as marcas tentaram extravasar o seu campo de acção tentando associar-se a tudo o que era moda ou tendência de forma a capitalizar e a maximizar os seus lucros. As marcas queriam ser apetecíveis ou "cool". Em muitos casos quiseram criar a imagem de um conceito ou estilo de vida associado à posse do produto que vendem. Isso, na visão da autora, leva a que estas marcas acabem por dar mais ênfase ao marketing e à imagem do que propriamente ao produto fabricado/vendido pelas mesmas. É incrível observar que 20 anos depois, os grandes clubes desportivos (no qual se insere o nosso), tentem emular esta mesma receita, ignorando o facto de que ao contrário das demais marcas não necessitam estar a criar este tipo de vínculo que já era natural numa relação clube > adepto ou numa esfera ainda mais próxima clube > associado. Quanto muito, era só necessário fazer uma "activação" usando um termo do meio. Mas há mais. A progressiva professionalização dos clubes desportivos, em especial da década de 90 em diante (em Portugal um pouco mais tarde com o advento das SAD's), e a adopção de um tipo de gestão concentrada numa pequena elite (a SAD e os seus administradores), chocou/choca muitas vezes com a própria natureza democrática do clubes de sócios como o nosso. Mesmo se a maioria da própria SAD esteja (como no nosso caso), nas mãos do clube de sócios. Aliás esta é uma das outras grandes confusões que ocorrem. Muitas vezes quando falamos do clube, na realidade estamos a falar de uma SAD, que obviamente responde a outro tipo de mecanismos e aos seus shareholders. Isto cria o tal acesso limitado à decisão (que Rancière denuncia no contexto da arte) e cria um maior distanciamento entre o sócio (que sente-se impotente) e a tal "estrutura" à frente do clube, o que aliado à comodificação geral da sociedade, leva a que o futebol (ou desporto falando em termos gerais) passasse a ser um bem ou um serviço com o mesmo peso de uma outra actividade de entretenimento. A ideia do clube ser a soma dos seus associados esbate-se neste cenário.


Um dos segredos para a imensa força do Sport Lisboa e Benfica sempre foi a militância activa da sua massa associativa. Algo que nem uma ditadura de 48 anos, repressora de liberdades básicas como associação ou expressão, colocou em causa. Algo que nem nas alturas mais difíceis da nossa história esteve sequer em risco (aliás, foi a sua salvação). Mas que as transformações vividas nos últimos 20 a 30 anos vieram soçobrar um pouco. Uma tendência recente que esta pandemia veio a pôr a descoberto (o processo eleitoral foi um grande exemplo disso mesmo).

Como já devem ter percebido, o título desta (já longa) reflexão não é inocente (aliás, o livro de Rancière foi a minha primeira recomendação no ep.#1 d'O Brinco).

Nem a altura em que o mesmo é escrito. Disputam-se este fim de semana, umas eleições presidenciais no qual se adivinha uma alta taxa de abstenção. Há uma pandemia, há toda uma panóplia de factores esta abstenção ocorrer (que serão objecto de análise noutros espaços por pessoas bem mais mandatadas do que eu).

Mas há igualmente a ideia de que nestes tempos tão atomizados e tão polarizados (vivemos basicamente em bolhas), a própria democracia liberal está algo doente.

Largas porções da sociedade sentem-se sem respostas, o que se reflecte numa maior distância entre eleitores e eleitos, o que por sua vez é propício ao aparecimento de respostas "fáceis" na maioria das vezes assentes em desinformação com um único propósito eleitoral, iludindo mais uma vez largas camadas da população já de si descontentes. Não obstante as 38.000 pessoas que enfrentaram uma pandemia e votaram em Outubro último - facto que devemos realçar e saudar, o mesmo se passa no nosso clube. Observando a intervenção na vida interna do clube, notamos que a passividade ocupou o espaço da militância que sempre nos caracterizou. Reescrevo novamente que o Benfica será sempre aquilo que os Benfiquistas quiserem que o clube seja. E talvez seja esta a via que as pessoas queiram. Talvez. Mas se ao invés de seguir um guião ou uma trama escrita por outros, se os associados se emancipassem e interviessem mais na vida do clubes (das mais variadas formas), talvez esta ideia do "clube ser a soma de um todo" volte a ser forte novamente.

Talvez a ideia que os sócios são o maior activo que o clube tem, seja algo mais do que um mero chavão que é muitas vezes dito.

Talvez assim, os sócios recuperem o papel activo de coro que Platão queria que os espectadores tivessem numa peça teatral: que desvendasse a trama e que guiasse o enredo e a história. Basta os sócios quererem intervir mais. Está nas mãos de todos nós rejeitar esta passividade e fazer com que tal aconteça. Retorno à "Mãe Coragem e os Seus Filhos". A peça retrata a história de uma vendedora ambulante, Anna Fierling (a "Mãe Coragem"), que no decurso da Guerra dos 30 Anos, ao tentar lucrar com as vicissitudes da mesma (numa atitude reactiva), acaba perdendo os seus três filhos. A maneira como o clube por vezes trata os seus associados e por sua vez a maneira como os sócios acomodam-se a esse papel tem uma estranha analogia com o enredo desta peça e é algo que tem de ser revertido até porque vai contra a própria natureza do clube.


Fundado em 1904 como Sport Lisboa, o Benfica sempre foi um clube transversal a nível social, estabelecido em Lisboa mas aberto desde sempre ao mundo.

Um clube assente desde os primórdios num forte sentido de comunidade, assente na diversidade de opiniões todos os seus membros.

Um clube que resistiu a todas as adversidades e dores naturais de parto e crescimento, sustentado na união e labor dos seus associados crentes num propósito bem definido: E Pluribus Unum. De todos um.

Algo que se manifestou continuamente ao longo de toda a sua história.

E algo convém ter em mente na hora de enfrentar os desafios no futuro.




Regresso a Félix Bermudes, um baluarte na história do nosso clube, que num excelente texto escrito no jornal do clube a 27 de maio de 1944 (vide imagem acima), explicava as razões do porquê de ser Benfiquista. A dada passagem escreveu: "Sou Benfiquista porque ajudei a construir, com uma parcela da minha própria alma, a catedral rubra da Alma do Benfica." Queiramos nunca perder esse sentimento de pertença até porque se fizermos isso e citando novamente Félix Bermudes "Mesmo batido pelas vagas mais alterosas, o Benfica não soçobrá!"


Viva o Benfica!

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